quarta-feira, 12 de agosto de 2015

É preciso desprecisar




Sempre odiei tudo o que escrevi.
Se não achava estúpido ou pobre ou exagerado ou insuficiente, achava fingido.. 

Foi aí que Manoel de Barros entrou na minha vida.
Me fez ver o quão pragmática e quadrada eu sou.
Me fez ver como eu estava equivocada ao tentar engaiolar as palavras a fim de fazê-las cantarem só para o meu bel prazer.
Não é preciso muito esforço para entender o porquê de conseguir tirar delas somente canções desesperadas.
Nas palavras eu conseguia ver somente uma vontade louca delas de fugirem de mim.

Observei a forma como Manoel deixava as palavras voarem livremente.
Com ele, as palavras ilimitam-se.
A poesia de Manoel de Barros não é gaiola.
A poesia dele é árvore. 
E as palavras pousam na árvore de forma tão natural quanto bela.
Livro sobre Nada é o livro sobre o desimportante.
Manual sobre como desprecisar.

Escrita boa não é pretensiosa.
Porque a pretensão pesa nas palavras.
E palavras pretensiosas pesam nos galhos das árvores.
Palavras-passáros transformam-se em extensões da árvore, mas se estiverem pesadas, se quebram os galhos, não são extensões, são diminuições.
E a alma depois do poema quer se expandir, não quer?
Nem que seja expandir pro vazio. E vazio não é diminuição, entendam. Melhor, sintam:

O menino que carregava água na peneira (Manoel de Barros)


Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.
A mãe disse que carregar água na peneira era o mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.


O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro botando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!

A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos



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